sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Caetano canta no sepultamento de Maria


Ao som de Epitáfio, Maria começa a sessão do arrependimento.
Devia ter namorado. Esta é a queixa que sempre permeia a sua vida.
Devia ter se esforçado para ter Unimed.
Carteira assinada.
Devia ter parado de dar desculpas. Ser direta. Sim ou não.
Não devia ter fugido de casa. Ter passado os natais lá. Guardasse o réveillon para se permitir longe do seio familiar.
Devia ter comido menos doce. Menos gordura. Ter bebido menos refrigerante. Não era para ter cortado nada. Apenas diminuído.
Devia ter se depilado diariamente. Ninguém sabe a hora de morrer. “É melhor que a sombra encapuzada e munida de foice nos pegue sem pêlos”.
Devia ter usado talco nos pés. Não quer que ninguém reclame de banhá-la quando o óbito for constatado.
Não devia ter quebrado espelhos. Devia sempre manter um no quarto. Ao lado da janela.
Por falar em janela, devia ter tirado aquele adeviso da rádio que nem ouve mais.
Devia ter sido mais objetiva. Gastar menos tempo.
Devia ter ouvido mais música ao vivo.
Não devia ter medo.
Devia fazer ao menos uma ligação por dia.
Devia ir ao médico ao sinal da primeira coceira suspeita.
Não devia ter matado aranha por matar.
Devia ter lido mais livros e menos blogs.
Devia ter trocado o e-mail por cartas. Emotcons por fotografias.
Não devia ter anunciado sua doença na internet. Devia, isso sim, ter usado da ferramenta para buscar a cura, pedir ajuda.
Devia ter sido sempre otimista. Tão somente.
Devia sorrir sempre. Não devia ter colocado aquele aparelho ortodôntico cinco anos antes de morrer.
Devia ter ido ao menos aos velórios de familiares. Não quer sepultamento vazio. Quer choro. Quer Caetano Veloso na despedida.
Devia ter escovado os dentes quatro vezes ao dia. Ter comprado mais balas de café.
Devia ter emagrecido. Caminhado. Pulado.
Devia ter vacinado contra a febre amarela. O que anula a sua vida é o câncer. Digo, os cânceres.
Não devia ter usado gel no cabelo.
Devia ter jogado no lixo todas as calcinhas furadas.
Devia ter evitado todos os papos furados.
Devia ter enfrentado as cobras cara a cara. Não fraquejar.
Devia conversar mais com a Catarina.
Devia aceitar a todas as propostas de emprego. Ser menos selecionadora.
Devia ter tomado mais banho de piscina. Aproveitado mais a Barra da Tijuca.
Agora, sabe que não dá mais. Até dá. Mas o desânimo, antes usado como desculpa, agora é fato.
Da falta de saúde e idade, antes dadas constantemente como motivos para parecer que já tinha morrido, agora são reais. A idade nem tanto. Mas a saúde ficou para trás ao toque de um formigamento. Maria, agora, só sabe recorrer a Maria. Tomara que as intercessoras não estejam em desuso.

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